“O meu pai não morreu de COVID, o meu pai morreu por negligência, por omissão”

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Pedreiro especializado na instalação de pisos e azulejos – tanto que foi o responsável por esse serviço nas Unidades Básicas de Saúde do Jardim Nova Era e da Vila dos Pinheiros, inauguradas em Caieiras, no ano passado – Antônio Luiz Honório, 60 anos, era um apaixonado por música. Adorava cantar músicas do “Rei” Roberto Carlos, rock nacional e internacional, além de flashbacks dos anos 80 no karaokê que ainda está na sala da casa onde morou pelos últimos trinta e poucos anos.

Seu Antônio ao lado da esposa, Dona Geni, com quem foi casado por 40 anos.

Sua história terminou na manhã da última segunda-feira, dia 29, após uma corrida contra o tempo e de batalhar muito pela vida.

“Ele não era só meu pai, era o pai do Renan, o avô do Isaque e da Vitória e o marido da dona Geni. E ele morreu não só pela COVID-19, mas também por negligência e pela omissão da Secretaria da Saúde”, conta a filha Fabiana, que ficou um ano sem abraçar os pais, mesmo morando no mesmo quintal. Não adiantou: ela, o pai e a mãe pegaram a doença. Dona Geni também teve sintomas graves, mas não precisou ser internada.

O pai, entretanto, mais do que uma vítima do novo Coronavírus, foi vítima da burocracia e, segundo Fabiana, da indiferença de quem, mesmo numa situação de guerra, deveria fazer o possível e o impossível para salvar vidas.

Após três dias com sintomas, o pai procurou atendimento no Centro Médico de Combate ao Coronavírus, em Laranjeiras, em busca de fazer o teste para detecção da COVID-19, mas que não foi feito porque “o sistema estava indisponível”. Saiu de lá com uma receita de Dipirona, para baixar a febre que persistia alta, e Floratil, para a diarreia.

Um dia depois, uma nova tentativa frustrada de fazer o teste. O sistema ainda estava fora do ar, por causa de problemas de internet naquela unidade de saúde.

No décimo primeiro dia de sintomas, seu Antônio não conseguiu dormir. Não sentia falta de ar, mas reclamava de fraqueza. Levaram-no para o Pronto Socorro Municipal, onde foi internado com taxa de saturação 36.

Medicado, o índice se manteve estável, na faixa de 97, durante uma semana. “Em uma semana, meu pai estava super consciente, pressão e batimentos cardíacos bons, era só a recuperação do pulmão, porque tinha o agravante dele ter sido fumante, embora tivesse largado o hábito há 12 anos. Então, o médico de plantão achou melhor sedá-lo. A intubação foi da noite do sábado para o domingo”.

“Conseguimos o mais difícil, a UTI, mas não pudemos transferi-lo”, lamenta Fabiana.

Numa situação em que os noticiários divulgam uma crescente alta na taxa de ocupação de leitos de terapia intensiva, conseguir uma vaga em UTI é quase um milagre, não é?

Logo que souberam que Antônio foi intubado, a família começou a buscar um leito de UTI para ele. Conseguiram um no Hospital Municipal José Soares Hungria, em Pirituba, mas a burocracia impediu que ele tivesse a chance de voltar a soltar a voz.

“A gente só precisava que a regulação municipal acionasse o CROSS e avisasse que tínhamos conseguido o leito. Ouvimos que não era só o meu pai que precisava, que não tinha como ficar o dia todo pendurado no telefone ligando para o CROSS”,

afirma Fabiana, revoltada com o que classifica como falta de boa vontade dos administradores do Pronto Socorro Municipal de Caieiras.

Falta de profissionais e medicamentos

Logo que o pai foi intubado, a família, além da vaga de UTI, também procurou fisioterapeuta para tratá-lo. Contrataram um profissional particular. “Meu pai manteve o quadro estável durante 15 dias, só que nesse meio tempo, o rim começou a parar… um médico e uma funcionária do hospital de campanha me falaram que não tinha fisioterapeuta”, diz a filha.

Assista ao vídeo:

 

No entanto, segundo Fabiana, “não deixaram o fisioterapeuta que nós contratamos entrar no Hospital de Campanha e nem no PS. Estamos até hoje esperando a resposta deles”.

Vale lembrar que, recentemente, a Prefeitura de Caieiras divulgou a contratação de um médico internista e de um fisioterapeuta pulmonar para atendimento exclusivo no Centro Médico de Combate ao Coronavírus.

No domingo (27), quando chegaram ao Pronto Socorro para visitar o pai, o médico de plantão, muito prestativo, segundo Fabiana, informou que o quadro era muito bom, mas havia um problema: seu Antônio havia sido sedado com um medicamento só e, no meio da noite, acordou e, na tentativa de se livrar do tubo, fez muito esforço, o que levou a uma piora no quadro de sua saturação. Além disso, por alguma falha humana na troca de plantão, o tubo não havia sido encaixado corretamente e estava frouxo. No entanto, a saturação já havia voltado aos níveis esperados.

“Dois dias antes, a gente perguntou se estava faltando medicação e o médico falou que não e que se faltasse tinha um Plano B”, lembra Fabiana, que conta, ainda, que algumas horas depois, entraram em contato do Pronto Socorro dizendo que o quadro havia piorado muito.

Ela fala que, quando a enfermeira chamou para que a família se despedisse de seu pai, a saturação estava em 59. Segundo ela, o médico, com lágrimas nos olhos, disse que se desde o começo ele tivesse passado por tratamento com fisioterapeuta, muito provavelmente teria se recuperado, sem ao menos precisar de UTI ou de ser intubado.

“O meu pai lutou muito aquela noite inteira, até o último minuto, mas, infelizmente, não resistiu. Ele lutou 15 dias, ficou 8 dias intubado. Eu vi 10 pessoas na frente dele morrerem. Ele só morreu porque faltou sedativo. O meu pai não morreu de COVID, o meu pai morreu por negligência, por omissão”.

Numa tentativa desesperada, Fabiana diz ter entrado em contato por telefone com o prefeito Gilmar Lagoinha e obteve como resposta que ele havia acabado de sair de uma reunião na qual foi informado que não seriam mais abertos os 20 leitos no Hospital Albano por falta de respiradores e que ia faltar oxigênio, faltar medicação, não só no SUS mas também em hospital particular. “Imagina você estar nessa situação e ouvir isso do prefeito?! É um horror!”, diz.

Fabiana registrou boletim de ocorrência para que a Polícia Civil investigue o caso. Para ela, tratou-se de cárcere privado, pois impediram seu pai de ir para um leito de UTI, necessário diante de seu quadro, e de tratamento com fisioterapeuta.

O que diz a Prefeitura

Em resposta enviada no final da tarde de quarta-feira (31), ou seja, após o fechamento desta reportagem, a Secretária Municipal de Saúde de Caieiras, Grazielle Bertolini, negou as acusações feitas pela família. Alegou que a prefeitura tem fisioterapeuta e que, inclusive, houve atendimento deste profissional ao Sr. Antônio.

Ainda, de acordo com a nota, Grazielle informou que desconhece a falta de medicamentos sedativos e que, se ela ocorreu, não foi informada pela Fundação Juquery, responsável pela administração do hospital.

Jornalista que gosta de História e, principalmente, de ouvir e contar histórias. Um curioso que já quis ser médico, arquiteto, designer de games e músico e encontrou no jornalismo uma forma de unir todas as suas paixões. E, de quebra, ainda encontrou mais uma: a fotografia, porque não basta conquistar pelas palavras. Imagens ainda contam muito nesse mundo cada vez mais hiperconectado.

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1 Response

  1. 08/04/2021

    […] se identificar à reportagem, que também cita a falta de fisioterapeuta pulmonar e o caso do Sr. Antonio Luiz Honório, divulgado em primeira mão, em detalhes, pelo Expresso Urbano. O Jornal da Record, inclusive, […]

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